Sem-abrigo condenado a pagar 11 mil euros à Câmara de Lisboa

Dia 22 de dezembro de 2023. Noite cerrada. Dois indivíduos encapuzados apressam-se a escrever a palavra “genocida” com um marcador vermelho nas paredes dos Paços do Conselho de Lisboa, enquanto outros dois atiram balões com tinta que tingem de vermelho a fachada do edifício, que alberga a Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Na varanda está hasteada uma bandeira da Palestina e um cartaz com a mensagem “Palestina livre”. A ação é rápida e os manifestantes fogem do local sem serem intercetados. Pelo menos, é isso que mostra o vídeo de 58 segundos partilhado na rede social X pouco tempos depois do protesto.
Em comunicado, o Coletivo pela Libertação da Palestina, a Climáximo e a Greve Climática Estudantil de Lisboa afirmaram depois que a ação foi levada a cabo por «ativistas solidários» destes movimentos e acusaram o presidente da autarquia, Carlos Moedas, de «apoiar o apartheid israelita».
Mas a versão do município e dos tribunais é outra. Mais de um ano depois do sucedido, apenas uma pessoa foi considerada culpada e condenada pelo ato de vandalismo: Rondinelli José Pontes, 40 anos, de nacionalidade brasileira, que na altura dos factos estava desempregado e a viver na rua. Em janeiro, foi condenado a pagar uma multa de 2.730 euros e uma indemnização de 10.855 euros à autarquia pelos crimes de introdução em lugar vedado ao público e de dano qualificado.
Além de não ter estado presente em nenhuma das audiências do julgamento, Rondinelli nunca apresentou contestação, nem arrolou testemunhas. A juíza, na leitura da sentença, assume que «desconhece a versão dos factos» do arguido, o que não impediu a sua condenação.
Mais estranho ainda: ninguém dos movimentos associados ao protesto o conhece nem sabe do seu paradeiro. "Ficámos todos um pouco chocados com a arbitrariedade do sistema judicial, dos tribunais e da polícia, porque dá perfeitamente para ver que é um julgamento completamente descabido", diz Alice Gato, ativista da Climáximo. "Vê-se perfeitamente pelos vídeos publicados que a ação foi feita por um grupo de pessoas e não por uma".
Versões contraditórias
O Nascer do SOL teve acesso ao processo judicial e às gravações das audiências. O vídeo do sucedido, onde é possível ver quatro autores, nunca é mencionado ao longo processo. A única versão tida em conta é a do agente principal Luís Rodrigues, que terá detido Rondinelli Pontes em flagrante delito às 7h30, enquanto fazia a ronda. O agente contou que ouviu um ruído no exterior e, ao chegar à entrada principal, apanhou o arguido «a escrever e a grafitar a fachada». Acrescenta ainda que este tinha consigo um saco com uma corda, que suspeita ter sido usada para escalar até à varanda do edifício para trocar as bandeiras.
A incongruência começa logo com o horário da detenção. Ao que o Nascer do SOL conseguiu apurar os comunicados e as fotografias do protesto foram enviados às redações pelos Coletivos às 7h29, o que torna praticamente impossível que o arguido tivesse sido apanhado no ato à mesma hora, sendo que o mesmo já teria terminado.
Mas há mais. A certa altura, ao relatar os factos, Luís Rodrigues fala no plural: "tiraram a bandeira da CML e puseram a da Palestina". A juíza não deixou passar em branco e questiona: "falou no plural, havia mais alguém no local, além do arguido?", ao que o agente responde que não. O vídeo divulgado nas redes sociais contraria esta versão, mostrando claramente que foi uma ação coletiva, com pelo menos quatro participantes.
Sem mais testemunhas, a versão do agente que se encontrava no local foi considerada provada e, com base nela, o arguido condenado, sem qualquer investigação adicional.
A 9 de janeiro de 2024, o agente Luís Rodrigues foi homenageado por Carlos Moedas com uma medalha de mérito "pela intervenção nos atos de vandalismo contra os Paços do Concelho, no dia 22 de dezembro de 2023".
Sem-abrigo condenado a pagar mais de 13 mil euros
Há ainda outro dado insólito que salta à vista. À data da apresentação da queixa-crime, a Câmara de Lisboa tinha estipulado o orçamento dos danos em 3.580 euros. Já na leitura da sentença, realizada no dia 9 de janeiro deste ano, o valor passou para 10.855 euros, uma diferença de mais de 7.000 euros.
A alteração do valor – que a juíza aponta como "não sendo consideravelmente elevado" – foi justificada por "trabalhos adicionais" na limpeza da tinta na fachada.
Desempregado e sem casa, Rondinelli vê-se ainda obrigado ao pagamento de uma multa de 2.730 euros e as custas judiciais de um processo em que nem participou.
"É completamente desproporcional. Tentámos entrar em contacto com a pessoa para a ajudar com o pagamento, mas sem sucesso", lamenta Alice Gato.
Movimentos acusam tribunal de "condenação arbitrária"
A 26 de fevereiro de 2025, os movimentos Coletivo pela Libertação da Palestina, Climáximo e Greve Climática Estudantil fizeram um comunicado no qual acusam a CML, PSP e tribunal de deterem e condenarem uma pessoa arbitrariamente.
Nele, referem que "a hora da detenção não bate certo, uma vez que antes da hora em que a detenção terá ocorrido já dezenas de jornalistas no país tinham recebido o comunicado de imprensa a informar da realização da ação, com fotografias e vídeos da mesma". Acrescentam que "é evidente que são pelo menos cinco pessoas a realizar a ação e não apenas uma".
Argumentam ainda que o vídeo confirma que não existiu qualquer detenção em flagrante e que "os coletivos falaram entre si e não conhecem ninguém que tenha sido detido, julgado ou condenado no seguimento desta ação".
Ao longo das últimas semanas, o Nascer do SOL tentou por várias vezes, sem sucesso, contactar Rondinelli Pontes e o seu advogado.
Cronologia dos acontecimentos
- 22 de dezembro de 2023
07h34: Vigilante da CML diz ter apanhado Rondinelli José Pontes, sozinho, a grafitar a fachada exterior do edifício. Circula um vídeo nas redes sociais que mostra quatro ativistas a grafitar e a atirar tinta vermelha à fachada da autarquia.
8h28: Coletivos Climáximo, Libertação da Palestina e Greve Climática Estudantil de Lisboa publicam comunicado que informa que o protesto foi levado a cabo por "ativistas solidários" dos movimentos.
11h36: CML apresenta queixa criminal contra Rondinelli Pontes e alega danos no valor de 3.580 euros.
13h02: Carlos Moedas emite comunicado a repudiar o "atentado".
- 27 de dezembro de 2023
CML requer abertura de inquérito ao DIAP contra Rondinelli Pontes e "outros desconhecidos".
- 9 de janeiro de 2024
Carlos Moedas entrega medalhas de mérito aos agentes Luís Rodrigues e Germano Silva "pela intervenção nos atos de vandalismo contra os Paços do Concelho".
- 4 de abril de 2024
DIAP de Lisboa comunica que proferiu acusação contra “um arguido pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público e de um crime de dano qualificado”.
- 11 de novembro de 2024
Rondinelli falta à primeira audiência do julgamento. Estão presentes como testemunhas: Luís Rodrigues, polícia municipal que deteve o arguido; Miguel Figueiredo, agente da PSP da 2. º Esquadra da Baixa Pombalina e Bruno Filipe Da Silva Carvalho, técnico da CML.
- 6 de janeiro de 2025
Rondinelli falta novamente a audiência de julgamento.
- 9 de janeiro de 2025
Rondinelli Pontes é condenado a pagar uma multa de 2.730 euros e uma indemnização de 10.855 euros à CML pelos crimes de introdução em lugar vedado ao público e de dano qualificado.
- 26 de fevereiro de 2025
Coletivos publicam comunicado em que acusam o Ministério Público de uma "condenação absolutamente arbitrária de uma pessoa que nada tem que ver com esta ação".
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