Morte de influencer francês revela profundezas e horrores do "trash streaming"

Aviso de conteúdo: Este artigo inclui menções de violência, suicídio e atos extremos que alguns leitores podem considerar perturbadores.
É uma tragédia que expôs um lado menos conhecido da cultura da Internet.
O streamer francês Raphaël Graven, conhecido online como Jean Pormanove, morreu na segunda-feira no sul de França durante uma transmissão em direto na plataforma de streaming Kick.
Graven, de 46 anos, foi um dos primeiros streamers em França e tinha cerca de meio milhão de seguidores nos seus vários canais.
Ao longo dos anos, tornou-se conhecido por praticar atos degradantes no ecrã, como o estrangulamento e a ingestão de produtos químicos tóxicos, por vezes a pedido e com o apoio financeiro dos espectadores em direto.
Graven apareceu ao lado de três outras pessoas - os seus parceiros habituais de streaming - durante os 12 dias de emissão que levaram à sua morte.
As imagens partilhadas nas redes sociais mostram dois desses homens, conhecidos como Naruto e Safine, a maltratarem-no fisicamente e a repreendê-lo. A ministra francesa dos Assuntos Digitais e da Inteligência Artificial, Clara Chappaz, descreveu o incidente como um "horror absoluto".
A polícia francesa abriu uma investigação sobre a morte de Graven e a autópsia deverá ser realizada esta quinta-feira.
O rapper Drake e o streamer norte-americano Adin Ross, ambos ligados financeiramente à empresa-mãe do Kick, ofereceram-se para pagar o funeral de Graven.
Este episódio de violência horrenda lança luz sobre um subgénero de conteúdos em linha em direto que é conduzido por streamers que se envolvem em comportamentos humilhantes e por vezes perigosos.
Os horrores perturbadores do "trash streaming"
O caso de Graven faz lembrar o trash streaming, um fenómeno que teve origem na década de 2010 e se tornou popular na Rússia e na Polónia.
Os "trash streamers" cometem atos degradantes, violentos e por vezes fatais contra si próprios ou contra outros.
Em 2021, um streamer russo foi condenado a seis anos de prisão pela morte da sua namorada grávida de 28 anos durante uma transmissão em direto em dezembro de 2020. O homem bateu na companheira, causando-lhe um traumatismo crânio-encefálico, e trancou-a fora de casa enquanto ela vestia apenas roupa interior, noticiou o Moscow Times.
Os paramédicos declararam a morte da jovem enquanto as câmaras ainda estavam a filmar. Mais tarde, a Rússia adotou uma lei federal que proíbe este tipo de transmissões.
O público é um dos principais participantes no "trash streaming".
"Os espetadores têm muitas vezes curiosidade em saber até que extremos os streamers de lixo são capazes de chegar", afirmaram as investigadoras Barbara Cyrek e Malwina Popiołek num artigo de 2022. "Quanto maior for a disponibilidade de ferramentas que permitam influenciar a forma da transmissão, maiores serão potencialmente as hipóteses de conteúdos mais extremos."
Em plataformas como o Kick ou mesmo o YouTube, os espetadores podem doar dinheiro para incentivar os criadores de conteúdo a irem mais longe.
O primeiro episódio da sétima série Black Mirror, que foi para o ar em abril, inspira-se neste fenómeno. O personagem principal, interpretado por Chris O'Dowd, junta-se a um site fictício de streaming de lixo chamado "Dum Dummies", onde executa tarefas humilhantes em troca de dinheiro para sustentar a sua mulher doente.
O episódio termina quando ele está prestes a suicidar-se durante a transmissão.
No caso de Raphaël Graven, o contador de donativos no final da sua live fatal de 298 horas indicava que ele e os seus parceiros tinham angariado mais de 36 000 euros.
Falta de regulamentação
Os criadores de conteúdos que se dedicam a práticas relacionadas com o" trash streaming" encontraram refúgio em plataformas pouco regulamentadas como o Kick.
O serviço australiano de transmissão ao vivo foi criado em 2022 pelos fundadores da empresa de jogos de azar Stake.
As diretrizes da comunidade do Kick proíbem oficialmente "conteúdo que retrata ou incita violência abominável, incluindo danos significativos, sofrimento ou morte", bem como "exibições de automutilação séria e significativa". No entanto, a plataforma fez crescer a sua marca e a sua base de utilizadores graças a políticas de moderação mais brandas do que as de rivais como o Twitch.
Em dezembro, os meios de comunicação social franceses Mediapart já tinham revelado que Raphaël Graven tinha sido vítima de um "negócio de humilhação" que durou anos.
A história levou os procuradores a abrir uma investigação, tendo os parceiros de Graven, Naruto e Safine, sido brevemente detidos.
Kick suspendeu temporariamente o seu canal antes de o autorizar a emitir novamente. Na altura, as revelações do Mediapart não suscitaram qualquer seguimento político ou legislativo.
A plataforma proibiu todos os streamers envolvidos no vídeo da morte de Graven e está a rever o seu conteúdo em francês, informou na quarta-feira. No entanto, Kick não disse se iria atualizar as suas diretrizes da comunidade, que atualmente afirmam que "a transmissão em direto, pela sua natureza, é imprevisível" e que "é impossível prever todos os resultados".
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