"Ninguém acredita que a Ucrânia vai recuperar a Crimeia", diz Durão Barroso
A União Europeia perdeu a esperança de que a Ucrânia consiga recuperar a Crimeia, a península anexada ilegalmente à Rússia em 2014, diz o antigo presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso, ao mesmo tempo que sublinha o seu apoio ao país.
Durão Barroso estava no cargo na altura da anexação e lembra-se de como os líderes da União Europeia se esforçaram nos bastidores para construir uma frente unificada contra o expansionismo do presidente Vladimir Putin.
"Tínhamos consciência ou governos europeus tinham consciência do facto de a Crimeia ser um caso especial. É por isso que hoje, honestamente, ninguém acredita que a Ucrânia vai recuperar a Crimeia. Esta é a realidade", disse Durão Barroso em entrevista exclusiva à Euronews.
O antigo presidente da Comissão Europeia reconheceu que as suas declarações eram "delicadas", uma vez que o colocavam diretamente em desacordo com a posição de longa data em relação à Ucrânia, que defende firmemente a recuperação completa de todos os territórios ocupados pela Rússia para as fronteiras de 1991.
"Vamos forçar a Rússia a encarar a realidade, nomeadamente o direito internacional, o poder da solidariedade global e a necessidade de restaurar a justiça plena para a Ucrânia e, em última análise, uma paz duradoura para todo o nosso país", disse o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy, em setembro, durante o discurso na Plataforma da Crimeia, uma cimeira anual dedicada à recuperação da península do Mar Negro.
A Crimeia é a Ucrânia", afirmou o porta-voz da Comissão Europeia, atualmente liderada por Ursula von der Leyen, em declarações à Euronews.
"Esta é uma posição consistente que os Estados-membros da União Europeia acordaram em todas as conclusões relevantes do Conselho Europeu desde 2014", disse o porta-voz.
Ao longo da entrevista, Durão Barroso sublinhou não ter "dúvidas" sobre o dever do bloco de apoiar a Ucrânia contra a invasão em grande escala da Rússia, que começou em fevereiro de 2022, argumentando que a guerra evoluiu para um "conflito global" devido à participação de tropas norte-coreanas e representa um "desafio existencial" para todo o mundo.
"Aconteça o que acontecer com os nossos amigos americanos, devemos apoiar a Ucrânia", disse, referindo-se à eleição de Donald Trump, que alimentou o receio de que Washington possa em breve cortar a assistência e deixar a Europa a apoiar a Ucrânia sozinha.
"O que está em causa na Ucrânia é uma questão fundamental para todo o mundo. O chamado Sul Global está a olhar", prosseguiu. "Os europeus, e também os americanos, são suficientemente fortes para defender as suas convicções ou vão desistir? Isto é muito importante".
"Uma situação extremamente difícil
Nesta entrevista à Euronews, gravada na tarde de terça-feira, Barroso recordou a disputa diplomática para delinear uma resposta comum da União Europeia à anexação da Crimeia pela Rússia.
Na altura, disse, havia três opções em cima da mesa: declarar guerra à Rússia, impor sanções ou fazer apenas uma declaração de condenação.
Com o "forte apoio" da Alemanha, de França e do Reino Unido, na altura um Estado-membro, o bloco optou pela segunda opção - impor sanções - mas rapidamente surgiu uma oposição a estes planos, disse Barroso.
"O primeiro foi, de facto, o [primeiro-ministro húngaro] Viktor Orbán. Orbán disse: 'Não concordo com as sanções porque vai haver contra sanções, vai ser negativo para nós. Mas se houver um consenso, não me vou opor'", recordou.
Os Países Baixos foram "bastante insulares" na tomada de posição, enquanto Malta, Chipre, a Grécia e a Eslováquia demonstram "algum nível de ambiguidade", explicou.
Para complicar ainda mais a situação, os Estados-membros não conseguiram chegar a acordo sobre o tipo de sanções que pretendiam aplicar. "É por isso que, no fim, o pacote de sanções foi relativamente minimalista em comparação com o que aconteceu depois", disse Barroso.
As sanções incluíram um embargo de armas, a proibição de importação de produtos fabricados na Crimeia, a proibição de exportação de tecnologia sensível e restrições aos bancos estatais russos, entre outras medidas. Dezenas de separatistas da Ucrânia Oriental foram incluídos na lista negra.
No rescaldo da invasão em grande escala, as sanções de 2014 foram alvo de um intenso escrutínio devido ao seu âmbito limitado e à sua incapacidade de reduzir o poder militar de Moscovo.
"Os governos não estavam preparados para ir mais longe. Essa é a realidade. A Comissão (estava) pronta para ir mais longe, mas os governos não estavam prontos para ir mais longe devido aos próprios interesses", admitiu Durão Barroso. "Foi uma situação extremamente difícil".
Putin não quer que a Ucrânia exista
Durante os 10 anos de mandato, Durão Barroso encontrou-se 25 vezes com Vladimir Putin, o que lhe deu acesso privilegiado ao pensamento obscuro do líder russo.
De acordo com Barroso, Putin "não quer que a Ucrânia exista". Em alternativa, imagina um "Estado vassalo" como a Bielorrússia, sem uma política externa e de defesa independente.
"Putin não quer chegar ao povo russo e dizer: 'OK, ganhámos mais algum território, um pouco do Donbass, um pouco da Crimeia'. O objetivo de Putin era evitar que a Ucrânia (fosse) um país. Eu sei porque falei com ele sobre isso", disse Barroso, lembrando conversas privadas com o líder russo.
"Ele disse-me: 'Por que está a defender a Ucrânia? Sabe muito bem que a Ucrânia é um país artificial criado pela CIA e pela Comissão Europeia'. Eu disse-lhe: 'Olha, se foi a Comissão Europeia que criou a Ucrânia, eu devia ser informado'".
Cabe à União Europeia decidir se Putin deve ser autorizado a cumprir a sua visão neoimperialista ou se estes impulsos devem ser contidos, argumentou Barroso.
"Vamos apoiar a Ucrânia para que a Ucrânia possa ser um país ou vamos dizer: 'OK, Sr. Putin, você é mais forte, nós somos fracos, pode ficar com a Ucrânia. Não é assim tão importante para nós". É essa a questão", acrescentou.
Questionado sobre se apoia as aspirações da Ucrânia à União Europeia, Durão Barroso disse que o bloco nunca admitiu um país que ainda estivesse a enfrentar uma guerra, tornando impossível para Bruxelas comprometer-se com uma data para Kiev estar pronta para aderir.
Entretanto, "devemos fazer tudo para ajudar a Ucrânia a tornar-se membro".
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