Senegal assinala 80º aniversário do massacre francês na 2ª Guerra Mundial
Biram Senghor vai regularmente prestar homenagem ao seu pai no cemitério militar de Thiaroye, uma aldeia piscatória perto da capital senegalesa, Dakar, curvando-se de cada vez perante uma campa diferente.
O homem de 86 anos não tem forma de saber a que campa pertence o seu pai, M'Bap Senghor, uma das prováveis centenas de atiradores da África Ocidental que lutaram pela França durante a Segunda Guerra Mundial, mas que foram mortos a 1 de dezembro de 1944 pelo exército francês, depois de terem exigido salários não pagos.
Neste cemitério onde supostamente estão enterrados, todas as campas são anónimas e a localização exata dos restos mortais é desconhecida, tal como o número de vítimas. A verdadeira dimensão e as circunstâncias dos assassinatos continuam por esclarecer, numa altura em que o Senegal comemora o 80º aniversário do massacre, no domingo, ameaçando reacender as tensões latentes entre França e a antiga colónia.
"Há mais de 80 anos que luto para obter respostas", diz Biram Senghor. "O presidente francês Emmanuel Macron não pode fazer o que os outros presidentes franceses fizeram antes dele; a França tem de se arrepender.
Os africanos ocidentais eram membros da unidade denominada Tirailleurs Sénégalais, um corpo de infantaria colonial do exército francês que lutou nas duas guerras mundiais. Segundo os historiadores, houve disputas sobre salários não pagos nos dias que antecederam o massacre e, a 1 de dezembro, as tropas francesas viraram-se contra os soldados africanos desarmados e mataram-nos a tiro.
Para assinalar a comemoração, a agência noticiosa senegalesa publicou um vídeo de arquivo dos militares no X.
Durante décadas, as autoridades francesas tentaram minimizar o que se tinha passado em Thiaroye. Os relatórios do exército francês, logo após o massacre, determinavam que 35 soldados da África Ocidental tinham sido mortos em resposta a um "motim". Outros relatórios do exército francês referem 70 mortos.
Mas, atualmente, muitos historiadores franceses e senegaleses concordam que o verdadeiro número de mortos deve rondar as centenas, com alguns a falar de quase 400 soldados mortos, com base em estimativas do número de atiradores presentes no campo no dia do massacre.
Na quinta-feira, Macron reconheceu oficialmente, pela primeira vez, os acontecimentos de Thiaroye como um massacre, numa carta dirigida ao Presidente do Senegal, Diomaye Faye, a que a Associated Press teve acesso.
"França tem de reconhecer que, nesse dia, o confronto entre soldados e militares que exigiam o pagamento integral dos seus legítimos salários desencadeou uma cadeia de acontecimentos que resultou num massacre", lê-se na carta de Macron.
Mas muitos historiadores contestam a ideia de um confronto entre os soldados franceses e os tirailleurs.
"O que aconteceu a 1 de dezembro foi a execução de soldados desarmados", afirma Martin Mourre, historiador francês e autor de "Thiaroye 1944, História e Memória de um Massacre Colonial".
O historiador francês refere o facto de não terem sido mencionadas armas durante o julgamento dos militares africanos acusados de motim e a ausência de feridos entre os soldados franceses como prova de que não houve confronto.
Na sua carta ao presidente senegalês, Macron não mencionou o número de soldados mortos.
As controvérsias e incógnitas sobre o massacre devem-se, em parte, à falta de transparência das autoridades francesas relativamente aos relatórios e testemunhos militares.
Em 2014, o presidente francês François Hollande entregou os arquivos da nação europeia sobre Thiaroye a Macky Sall, então presidente do Senegal.
Os historiadores dizem que continuam a faltar documentos importantes, incluindo os que indicam o local das valas comuns e o número de soldados africanos presentes no campo no dia do massacre. Não se sabe se França possui esses arquivos ou se eles existem.
O gabinete de Macron e o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês não responderam aos pedidos de comentário.
Além disso, as autoridades senegalesas, durante o mandato do antigo presidente Sall, fizeram muito pouco para permitir que os historiadores se debruçassem sobre os documentos históricos.
"Os arquivos permaneceram inacessíveis até este ano, por razões obscuras", diz Mourre.
Mamadou Diouf, um historiador senegalês que dirige o comité de comemoração do massacre de Thiaroye este ano, diz que Sall não mostrou muito interesse no assunto para evitar tensões diplomáticas com a França.
Governo senegalês organiza grandes comemorações
Mas Bassirou Diomaye Faye, eleito em março com a promessa de redefinir as relações entre o Senegal e o antigo colonizador, prometeu recuperar o controlo da narrativa histórica sobre Thiaroye.
A sua administração organizou grandes comemorações do massacre, de 1 de dezembro a abril do próximo ano, em todo o país.
"O objetivo das autoridades por detrás das grandes comemorações é tornar Thiaroye parte da história nacional do Senegal", afirma Babacar Ndiaye, analista político do grupo de reflexão Wathi, que se dedica a questões políticas e económicas na África Ocidental.
"Vai ser muito falado na televisão, na imprensa e, sobretudo, nas redes sociais", acrescenta. "Isto vai chegar a um público mais jovem que pode saber pouco sobre os acontecimentos de Thiaroye."
O 80º aniversário do massacre ocorre num momento em que a influência de França está a diminuir na região, com Paris a perder o seu domínio nas suas antigas colónias da África Ocidental.
Nos últimos anos, as tropas francesas foram expulsas do Níger, do Mali e do Burkina Faso, após anos de luta contra os extremistas islâmicos ao lado das tropas regionais. No início desta semana, o Chade, um dos últimos países da região em que França mantinha uma grande presença militar, pôs termo a um acordo de cooperação militar com Paris.
França mantém ainda cerca de 350 militares no Senegal, principalmente num papel de apoio. Questionado sobre a continuação da sua presença, Faye sugeriu que não é algo que os senegaleses desejem.
"Historicamente, França escravizou, colonizou e ficou aqui", disse. "Obviamente, penso que se invertermos um pouco os papéis, será difícil conceber que outro exército - da China, da Rússia, do Senegal ou de qualquer outro país - possa ter uma base militar em França."
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