"Cyber gulag": como a Rússia segue, censura e controla os seus cidadãos online

Vídeos do YouTube que não carregam, uma visita a um site de notícias independente que apenas apresenta uma página em branco ou ligações à internet, via telemóvel, que ficam inativas durante horas ou dias.
Estar online na Rússia pode ser frustrante, complicado e até perigoso.
Não se trata de uma falha na rede, mas de um esforço deliberado, multifacetado e a longo prazo das autoridades para colocar a Internet sob o controlo total do Kremlin.
As autoridades adotaram leis restritivas e proibiram os sites e as plataformas que não cumprem essas leis. A tecnologia foi aperfeiçoada para monitorizar e manipular o tráfego online.
Embora ainda seja possível contornar as restrições através da utilização de aplicações de redes privadas virtuais (VPN), estas também são regularmente bloqueadas.
Este verão, as autoridades restringiram ainda mais o acesso à internet com o encerramento generalizado dos acessos por telemóvel e com a adoção de uma lei que pune os utilizadores que procurem conteúdos que considerem ilícitos.
Ameaçam também perseguir a popular plataforma WhatsApp, ao mesmo tempo que lançam uma nova aplicação de mensagens "nacional" que, segundo se espera, será fortemente controlada.
O presidente russo, Vladimir Putin, instou o governo a "sufocar" os serviços de internet estrangeiros e ordenou às autoridades que elaborassem uma lista de plataformas de Estados "hostis" que deveriam ser restringidas.
Especialistas e defensores dos direitos humanos disseram à The Associated Press que a escala e a eficácia das restrições são alarmantes.
As autoridades parecem mais hábeis agora, em comparação com os esforços anteriores, em grande parte inúteis, para restringir as atividades online, e estão cada vez mais perto de isolar a Internet na Rússia.
Anastasiia Kruope, investigadora da Human Rights Watch, descreve a abordagem de Moscovo para controlar a Internet como uma "morte por mil cortes". "Pouco a pouco, está-se a tentar chegar a um ponto em que tudo é controlado", explica.
Censura após os protestos de 2011-12
Os esforços do Kremlin para controlar o que os russos fazem, lêem ou dizem online remontam a 2011-12, quando a Internet foi utilizada para desafiar a autoridade.
Os meios de comunicação social independentes floresceram e as manifestações anti-governamentais, coordenadas online, eclodiram após a disputa das eleições parlamentares e a decisão de Putin de se recandidatar à presidência.
A Rússia começou a adotar regulamentos que reforçavam o controlo da internet: alguns bloquearam websites; outros obrigaram os fornecedores a armazenar registos de chamadas e mensagens, partilhando-os com os serviços de segurança, se necessário, e a instalar equipamento que permitisse às autoridades controlar e cortar o tráfego.
Empresas como a Google ou o Facebook foram pressionadas a armazenar dados dos utilizadores em servidores russos, sem sucesso, e foram anunciados planos para uma "internet soberana" que poderia ser isolada do resto do mundo.
Os processos judiciais por publicações e comentários nas redes sociais tornaram-se comuns, mostrando que as autoridades estavam a vigiar de perto o espaço online.
Ainda assim, os especialistas consideraram inúteis os esforços do Kremlin para controlar a Internet, argumentando que a Rússia estava longe de construir algo semelhante à "Grande Firewall" da China, que Pequim utiliza para bloquear sites estrangeiros.
Invasão da Ucrânia desencadeia repressão
Após a invasão total da Ucrânia pela Rússia em 2022, o governo bloqueou as principais redes sociais, como o Twitter, o Facebook e o Instagram, bem como o Signal e algumas outras aplicações de mensagens. As VPN também foram visadas, dificultando o acesso a sites restritos.
O acesso ao YouTube foi interrompido no verão passado, naquilo que os especialistas designaram por limitação deliberada por parte das autoridades. O Kremlin acusou a Google, proprietária do YouTube, de não manter o seu hardware na Rússia.
A plataforma tem sido muito popular na Rússia, tanto para entretenimento como para vozes críticas do Kremlin, como a do falecido líder da oposição Alexei Navalny.
O Cloudflare, um fornecedor de infraestruturas de Internet, afirmou em junho que os sites que utilizam os seus serviços estavam a ser estrangulados na Rússia. O site de notícias independente Mediazona informou que vários outros fornecedores de alojamento ocidentais populares também estão a ser inibidos.
O advogado cibernético Sarkis Darbinyan, fundador do grupo russo de liberdade na Internet Roskomsvoboda, afirmou que as autoridades têm tentado forçar as empresas a migrar para fornecedores de alojamento russos que possam ser controlados.
Sarkis Darbinyan estima que cerca de metade dos websites russos são alimentados por fornecedores estrangeiros de alojamento e infraestruturas, muitos dos quais oferecem melhor qualidade e preço do que os seus equivalentes nacionais.
"Um grande número de sites e plataformas globais utilizam esses fornecedores", disse ele, pelo que cortá-los significa que esses sites "tornam-se automaticamente inacessíveis" também na Rússia.
Outra tendência preocupante é a consolidação dos fornecedores de Internet russos e das empresas que gerem os endereços IP, de acordo com um relatório recente da Human Rights Watch.
No ano passado, as autoridades aumentaram o custo da obtenção de uma licença de fornecedor de Internet de 7.500 rublos (cerca de 80 euros) para 1 milhão de rublos (cerca de 10.700 euros) e os dados estatais mostram que mais de metade de todos os endereços IP na Rússia são geridos por sete grandes empresas, sendo que a Rostelecom, o gigante estatal dos telefones e da Internet, é responsável por 25%.
O Kremlin está a tentar "controlar o espaço da Internet na Rússia e a censurar coisas, a manipular o tráfego", disse Kruope da HRW.
Criminalização das pesquisas "extremistas"
Uma nova lei russa criminalizou as pesquisas online de materiais "extremistas" definidos em termos gerais. Entre esses materiais podem incluir-se conteúdos LGBTQ+, grupos da oposição, algumas canções de artistas críticos do Kremlin e o livro de memórias de Navalny, que foi classificado como extremista.
Os defensores dos direitos afirmam que se trata de um passo no sentido de punir os consumidores e não apenas os fornecedores, à semelhança da situação na Bielorrússia, onde as pessoas são regularmente multadas ou presas por lerem ou seguirem determinados meios de comunicação independentes.
Stanislav Seleznev, perito em cibersegurança e advogado do grupo de defesa dos direitos à liberdade na internet, não antecipa a instauração de processos generalizados, dado que rastrear as pesquisas individuais online num país com 146 milhões de habitantes continua a ser uma tarefa difícil. "No entanto, mesmo um número limitado de casos poderia intimidar muitas pessoas relativamente ao conteúdo restrito", afirmou.
Outro passo importante poderia ser o bloqueio do WhatsApp, que, segundo o serviço de monitorização Mediascope, contava com mais de 97 milhões de utilizadores mensais em abril.
O WhatsApp "deve preparar-se para sair do mercado russo", declarou o legislador Anton Gorelkin, acrescentando que um novo serviço de mensagens "nacional", o MAX, desenvolvido pela empresa de comunicação social VK, ocuparia o seu lugar. "O Telegram provavelmente não sofrerá restrições", afirmou.
MAX, o novo "WhatsApp" russo
O MAX, promovido como um balcão único para mensagens, serviços governamentais online, pagamentos e outros, foi lançado para testes beta, mas ainda não atraiu um grande número de seguidores. Mais de dois milhões de pessoas registaram-se em julho, segundo a agência noticiosa Tass.
Os seus termos e condições dizem que os dados dos utilizadores serão partilhados com as autoridades a pedido destas, e uma nova lei estipula a sua pré-instalação em todos os smartphones vendidos na Rússia. As instituições estatais, os funcionários e as empresas são ativamente encorajados a transferir as comunicações e os blogues para o MAX.
Anastasiya Zhyrmont, do grupo de defesa dos direitos digitais Access Now, afirmou que tanto o Telegram como o WhatsApp sofreram interrupções na Rússia em julho, o que poderá ser um teste à forma como os potenciais bloqueios afetariam a infraestrutura da Internet.
Não seria invulgar. Nos últimos anos, as autoridades testaram regularmente cortar a Internet do resto do mundo, o que por vezes resultou em interrupções em algumas regiões.
Darbinyan, regulador governamental dos media e da Internet, acredita que a única forma de obrigar as pessoas a utilizar o MAX é "encerrar, sufocar" todas as alternativas ocidentais. "Mas, mais uma vez, os hábitos (...) não mudam num ano ou dois. E estes hábitos foram adquiridos ao longo de décadas, quando a Internet era rápida e gratuita", afirmou.
Segundo Darbinyan, o Roskomnadzor - Serviço Federal de Supervisão de Comunicações, Tecnologia da Informação e Meios de Comunicação de Massa russo - utiliza métodos mais sofisticados, analisa todo o tráfego da Web e identifica o que pode ser bloqueado ou suprimido.
Para isso contribuíram "anos de aperfeiçoamento da tecnologia, anos de controlo e compreensão da arquitetura da Internet e dos intervenientes", bem como as sanções ocidentais e a saída de empresas do mercado russo desde 2022, disse Kruope, da Human Rights Watch.
A Rússia "ainda não chegou ao ponto" de isolar a sua Internet do resto do mundo", disse Darbinyan, mas os esforços do Kremlin estão a "aproximá-la".
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