O mundo infinito (e calórico) da doçaria portuguesa de Natal
O melhor será começar este artigo com um aviso: provavelmente, irá engordar só de ler as linhas que se seguem e de olhar para as fotos. É verdade que o que engorda verdadeiramente não é o que comemos entre o Natal e o Ano Novo, mas o que comemos entre o Ano Novo e o Natal...
No entanto, a carga calórica das tradições portuguesas de Natal não é de subestimar, por isso é bom fazer algum exercício por estes dias, nem que seja ir a pé comprar os presentes.
Outros países orgulham-se de mesas fartas na noite de Natal, com acepipes como foie gras, ostras, salmão fumado, ouriços-do-mar, marisco e até — para as carteiras mais recheadas, claro — produtos de luxo como o champanhe ou o caviar. Já os portugueses são mais comedidos no que toca ao prato principal na noite da consoada. Algumas famílias têm a tradição do peru, comum em outros países. Outras, sobretudo no norte do país, têm o hábito de comer polvo. Mas o prato que a esmagadora maioria elege para a noite de 24 de dezembro é o bacalhau com todos, ou seja, cozido com batatas, couve, ovo e grão-de-bico.
Ora, se a refeição é simples, por que razão a altura do Natal é tão temida por quem tem medo de ganhar alguns quilos? A resposta está nos doces. Sim, os portugueses comem muitos doces nesta altura e isso não se limita aos dias 24 e 25 de dezembro. No início do mês, ou até antes, todas as pastelarias já têm a doçaria de Natal pronta e o hábito de comer doces de Natal dura todo o mês de dezembro e prolonga-se até ao Dia de Reis.
Os doces de Natal portugueses, além das quantidades generosas de açúcar e ovos que levam, são geralmente fritos, o que faz crescer ainda mais a contagem de calorias.
Alguns doces são mais fáceis de fazer em casa do que outros. As rabanadas (ou fatias douradas), por exemplo, são relativamente fáceis de fazer. Outros, como o bolo-rei, são bastante mais elaborados e quase ninguém os faz em casa.
Carla Gonçalves, informática de profissão, é uma exceção. A viver em Lisboa, originária de uma família da Beira Alta, faz questão de ser ela própria a fazer todos os doces que coloca na mesa de Natal e tira três dias só para os confecionar.
"Tento comprar todos os presentes de Natal até ao fim da primeira semana de dezembro, para depois me dedicar à cozinha", diz à Euronews. "Começo então a fazer todas as compras que preciso para a preparação dos vários doces, deixando os ovos para o fim". Antes do Natal, os últimos três dias são passados a cozinhar: "O primeiro dia é para fazer as preparações, cortar as frutas, cortar os pães e desfazer o pão. Para os formigos (bolo tradicional do norte) preciso do pão migado, já para as fatias douradas preciso do pão fatiado". Ocupa depois um dia inteiro com as filhoses e outro com o bolo-rei, já que ambas as receitas obrigam a que a massa levede, o que demora várias horas. No caso do bolo-rei, a massa tem de fermentar três vezes.
Fazer bolo-rei em casa é muito raro, mas é uma receita que Carla herdou da mãe: "Por altura da revolução do 25 de Abril de 1974, houve uma greve dos padeiros que durou 15 dias. Por isso, como estávamos sem pão em casa, a minha mãe aprendeu a mexer na massa lêveda e, assim, também aprendeu a fazer bolo-rei", explica.
Outras sobremesas como o arroz-doce ou a aletria, que não são necessariamente típicas do Natal e são comidas todo o ano, fazem também parte do menu de Natal de muitas famílias. No caso do arroz-doce, é obrigatório na mesa de Natal da família de Carla. Feito em casa, claro.
A verdade é que cada vez menos famílias têm tempo para confecionar os doces. Por isso, as pastelarias não têm mãos a medir nesta altura.
Pastelarias com muito trabalho
Uma das mais antigas e prestigiadas de Lisboa, na qual muitos confiam para os doces de Natal, é a 1800, no Largo do Rato. Aberta desde 1857, somos confrontados com os painéis de azulejos que datam da renovação feita nos anos 1920, mal passamos a porta. Mas, sobretudo nesta altura, é a miríade de bolos e doces típicos que nos interpela.
Se o volume de trabalho aumenta consideravelmente com a chegada da quadra natalícia, os dias 23 e 24 de dezembro são os mais loucos no estabelecimento. O patrão, Gentil Pereira, e o gerente, Pedro Gaspar, não dormem nessa noite: "Estamos dois dias sem ir à cama. Vimos trabalhar no dia 23 e só vamos para casa no dia 24, quando fechamos. Ficamos aqui a fazer os fritos e os bolos de Natal e não dormimos", conta Pedro Gaspar.
Durante o dia 24 de dezembro, à semelhança de outras pastelarias, a 1800 encerra todo o serviço de café para se dedicar apenas à venda de bolos para fora, sobretudo para responder às centenas de encomendas para a ceia de Natal feitas pelos clientes nos dias anteriores.
A faturação nesse dia é "o dobro ou o triplo de um dia normal", acrescenta. Não arrisca dizer um número, em termos de dinheiro, mas afiança-nos que, só em termos de bolos-rei e bolos-rainha, são vendidos "várias centenas, talvez 300", apenas durante o dia 24 de dezembro.
Quais são, então, esses doces que fazem as delícias dos portugueses (e o pesadelo dos nutricionistas) na época natalícia?
Rabanadas / Fatias douradas
Se este é um dos doces de Natal mais consensuais em Portugal, já o nome é fonte de um velho conflito: no norte, é conhecido como "rabanadas". No sul e em Lisboa, leva o nome mais pomposo de "fatias douradas" e até há quem lhe chame "fatias paridas".
A receita é simples: fatias de pão (pão de forma ou cacete) embebidas em leite e ovos, fritas e polvilhadas com açúcar e canela. A origem vem provavelmente do pain perdu francês, uma sobremesa semelhante, feita neste país para aproveitar os restos de pão, popular em certas regiões todo o ano (não necessariamente no Natal).
Sonhos
Outro doce de Natal extremamente popular e com uma receita simples é o sonho. Deliciosos e fofos — a qualidade de um sonho mede-se pela fofura, habitualmente — quando acabados de fazer, começam a perder a piada no dia seguinte, mesmo se ninguém resiste, no dia de Natal, a comer os sonhos que sobraram da ceia da véspera. Ao fim de vários dias, passam de "sonhos" a "pesadelos".
São feitos de uma massa muito líquida, à base de farinha de trigo e ovos, que é (já terão adivinhado) frita e envolvida em açúcar... muito açúcar. Há algumas variações que podem ser feitas com polme de cenoura (mais popular a sul) ou de abóbora (mais comum a norte). Este último tipo também é conhecido como velhoses.
Broas Castelar
A broa Castelar deve o seu nome aos irmãos Castelar, donos da extinta Confeitaria Francesa, na Baixa de Lisboa, onde nasceu esta receita. Trata-se de um pequeno bolo em forma de elipse (impossível comer só um) à base de ovos, batata-doce e amêndoa.
Uma variante mais doce, mais pequena e com mais ovos, polvilhada com dragueias coloridas, tornou-se popular com o nome de broa de espécie.
Filhoses
A filhós é um doce, à semelhança do sonho, feita de uma massa à base de farinha e ovos que é frita e envolvida em açúcar, mas há quase tantas receitas de filhoses como há regiões em Portugal: "Há zonas onde leva muitos ovos, há outras em que leva poucos ovos. É também típico juntar aguardente, em particular aguardente bagaceira, porque dá um perfume especial, e laranja", explica Carla Gonçalves. A grande diferença em relação aos sonhos é que a massa é levedada.
Coscorões
O coscorão é uma variante da filhós mais fina e mais estaladiça, muito semelhante à oreillette (essa ainda mais fina), doce tradicional em França por altura do Carnaval.
Azevias
A azevia tem a forma de um rissol e consiste numa massa recheada com um doce à base de grão-de-bico, existindo também uma variante de batata-doce. É igualmente frita e envolvida em açúcar.
Bolo-rainha
Menos famoso que o bolo-rei, trata-se de uma variante para quem é pouco fã de fruta cristalizada, já que este não leva nenhuma e é reforçado com frutos secos.
Bolo-rei
Guardámos para último aquele que faz todo o jus ao nome que leva, já que é o rei da mesa de Natal e muito poucas famílias portuguesas o dispensam. Curiosamente, começou por ser um bolo típico não do Natal, mas do Dia de Reis, inspirado em bolos semelhantes típicos de outros países, como a Rosca de Reyes espanhola (popular também no México, com algumas diferenças) ou a Couronne des Rois, também chamada Gâteau des Rois, francesa. Foi com base nesta última que Balthazar Castanheiro Júnior, proprietário da Confeitaria Nacional (casa bicentenária na Baixa de Lisboa, que ainda hoje existe), criou o bolo-rei no final do século XIX.
Trata-se de um bolo redondo, com um buraco no meio, feito de uma massa fofa que deve levedar três vezes, misturada com frutos secos e fruta cristalizada. Com uma nova camada de frutos secos, fruta cristalizada e açúcar por cima, é pincelado com ovos batidos antes de ir ao forno cozer.
Inicialmente, mantendo a tradição dos bolos semelhantes em Espanha e França, cada bolo-rei continha um brinde (um pequeno ornamento) e uma fava seca. O brinde deveria dar sorte a quem calhasse tê-lo na sua fatia, e a fava significava que quem ficasse com ela deveria pagar o próximo bolo-rei.
No entanto, uma lei de 2011 regulamentou esta prática (embora sem a proibir totalmente) e fez com que a fava e o brinde caíssem em desuso. Hoje, quase todos os bolos-rei à venda em Portugal deixaram de os incluir.
De referir também outros doces cuja venda está, habitualmente, restrita ao dia 24 de dezembro: a lampreia de fios de ovos e o tronco de chocolate. Certamente, teremos esquecido algum bolo, pois a criatividade dos pasteleiros portugueses é infinita quando falamos de Natal.
Boas festas e... cuidado com a linha!
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