Portugueses da flotilha humanitária ainda não receberam “fatura” do repatriamento de Israel

Os quatro ativistas portugueses que foram repatriados por Israel depois de terem sido intercetados a bordo dos navios integrados numa flotilha humanitária em direção à Faixa de Gaza ainda não receberam qualquer notificação ou fatura para pagarem a viagem, embora o Governo português tenha feito saber que iria cobrar-lhes os custos do repatriamento. Deixaram também duras críticas ao que consideraram ser a falta de apoio por parte do Executivo, que acusaram de conduta "miserável e vergonhosa".
Mariana Mortágua, Sofia Aparício, Miguel Duarte e Diogo Chaves integraram a missão humanitária da Flotilha Global Sumud, que rumava em direção a Gaza com o objetivo de fornecer bens e ajuda essencial à população que tem sentido o impacto dos ataques israelitas sobre o enclave palestiniano nos últimos meses.
As embarcações em que seguiam foram intercetadas pela Marinha israelita e, entre mais de 450 ativistas de várias nacionalidades, os quatro portugueses foram depois encaminhados para um centro de detenção no deserto de Neguev, no sul de Israel.
Foi nesse local que foram mantidos desde quinta-feira passada, dia 2 de outubro, até ao seu repatriamento para Portugal, no domingo seguinte, em condições que referiram ser “desumanas”. Desde então, muitas têm sido as queixas por parte dos quatro cidadãos nacionais acerca do que consideram ter sido a falta de apoio do Estado português à missão humanitária que integraram.
Em declarações à Euronews, o ativista Miguel Duarte disse mesmo que “apoio foi quase nenhum”, tendo salientado ainda que, na sua ótica, “a prestação do Estado português, e também do Governo português em particular, ao longo de toda esta viagem, foi absolutamente miserável e vergonhosa”.
Referiu, no entanto, ser “importante separar a atividade do consulado português em Israel e do Estado português”, assinalando que o consulado foi “exemplar”.
"Foram ter connosco à prisão, tanto quanto as forças israelitas lhes permitiram, passaram mensagens às nossas famílias para as tranquilizar e fizeram aquilo que me pareceu que estava ao seu alcance para garantir que éramos relativamente bem tratados”, destacou.
Ativista diz que ainda não recebeu a “fatura” dos custos de repatriamento
Conforme já noticiado pela Euronews, o Governo português anunciou que iria exigir o pagamento dos custos associados ao repatriamento dos ativistas de Israel.
Mas Miguel Duarte assegurou que ainda não recebeu qualquer notificação oficial nesse sentido e que, portanto, nem sequer tem uma ideia da ordem de valores que estarão eventualmente em causa. “O que me faz pensar que, se o Estado português vai mais depressa ter com a imprensa nacional para falar sobre isto do que comigo, que sou, supostamente, o interlocutor, isto é uma jogada publicitária para apelar ao eleitorado de extrema-direita”, concluiu.
Numa publicação feita nas redes sociais, a página portuguesa ligada à flotilha humanitária indicou que tem recebido, ao longo dos últimos dias, “centenas de mensagens de solidariedade e ajuda para o reembolso dos custos” dos quatro elementos portugueses que seguiam na missão. No entanto, informou não ter recebido, até ao momento, quaisquer “notificações oficiais para o pagamento das viagens” e deu a entender que, caso estas cheguem entretanto, pretende “lidar” com as faturas sem recorrer a esses donativos.
“Um Governo decente enviaria a fatura ao Estado genocida que nos sequestrou e deteve ilegalmente, em vez disso, soubemos pela imprensa que a conta nos seria entregue”, lê-se no mesmo comunicado.
Também a coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, numa ação de rua no âmbito da campanha para as eleições autárquicas, no Porto, referiu que aguarda com "muita tranquilidade" a referida notificação para o pagamento dos custos de repatriamento.
"Tenho estado em campanha e, portanto, da mesma forma que tive dificuldade em ler o Orçamento do Estado porque o senhor primeiro-ministro e o Governo decidiram apresentá-lo antecipadamente, para evitar que a campanha fosse sobre os negócios mal explicados do primeiro-ministro, também tenho tido dificuldade em verificar a cada segundo se recebo notificações do Ministério dos Negócios Estrangeiros", apontou Mortágua, citada pela agência Lusa.
“Era fundamental que o Estado se comprometesse com a segurança dos tripulantes”
Quando questionado pela Euronews sobre o que, na sua perspetiva, deveria ter sido acautelado pelo Estado português para garantir que a missão cumpria o seu propósito humanitário, Miguel Duarte afirmou que “era absolutamente fundamental que o Estado português, na verdade, como fez o Estado espanhol, se comprometesse com a segurança dos tripulantes, dos trabalhadores humanitários, e com a necessidade de fazer chegar a ajuda humanitária às pessoas de Gaza”.
Recorde-se que Espanha, tal como Itália, ordenou o envio de navios das suas Marinhas para acompanhar a Flotilha Global Sumud e para lhe prestar assistência em caso de necessidade.
O ativista português acusou ainda, neste âmbito, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, de não ter agido como seria exigido numa situação desta natureza: “Sempre que se manifestou relativamente a esta ação humanitária, desdenhou, fez troça dela e tornou claro que não sentia qualquer responsabilidade de garantir que esta ação humanitária chegasse às mãos de quem mais precisa dela”.
Mas “mais grave ainda do que as barbaridades que Paulo Rangel disse, foi o que disse o ministro da Defesa [Nuno Melo]”, argumentou Miguel Duarte. “Enquanto nós estávamos capturados pelas forças israelitas, o próprio ministro da Defesa estava a chamar-nos terroristas”, afirmou.
O ativista português referia-se às declarações proferidas pelo responsável pela pasta da Defesa citadas pela agência Lusa, a propósito da participação de portugueses na flotilha humanitária rumo à Faixa de Gaza, que considerou ser “uma iniciativa panfletária” e “irresponsável, em direção a um território ocupado por uma organização terrorista”.
Nuno Melo, que além de ministro da Defesa é líder do CDS-PP, partido que integra a coligação governativa, descreveu ainda o grupo militante Hamas como um movimento que “oprime minorias, sejam elas religiosas ou pessoas em função daquilo que é a sua orientação sexual”, tendo questionado de seguida: "É para apoio a uma organização assim, considerada terrorista pela União Europeia, que estas pessoas [os quatro portugueses que seguiam na flotilha] se mobilizam em direção a um território que está em guerra?", disse.
Na visão de Miguel Duarte, estas posições, veiculadas por membros do Executivo nacional, foram uma espécie de “luz verde” para que os ativistas detidos fossem “tratados como os israelitas tratam os palestinianos”. E acrescentou: “O risco dessas declarações, depois de serem entendidas pelas forças israelitas como uma ‘luz verde’ para nos violentarem, ou pior, é muito alto”, sublinhou.
Mas “por muito vergonhosa que seja esta prestação”, prosseguiu o participante na missão humanitária, “está em linha com aquilo que o Estado português tem feito ao longo dos sucessivos Governos relativamente à causa palestiniana”. Isto porque, segundo destacou ainda, “está um genocídio a acontecer há anos e o Governo português mantém relações diplomáticas e comerciais com o Estado de Israel”. Uma realidade que, defende, “não cabe na cabeça de ninguém”.
É necessário impor sanções a Israel e cortar relações, diz o ativista
Portanto, “mais importante do que a posição do Estado português relativamente à flotilha humanitária em particular, seria uma alteração da posição do Estado português relativamente ao que se passa na Palestina”, detalhou o ativista, em declarações à Euronews.
"Agora que a ONU declarou finalmente que o que se passa em Gaza é um genocídio, já não existe desculpa absolutamente nenhuma, do ponto de vista institucional sequer [...], para Portugal se retirar das suas obrigações de fazer tudo o que está ao seu alcance para acabar” com essa realidade.
Em meados de setembro, uma comissão de inquérito independente nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU indicou que as ações de Israel em Gaza, ao longo dos últimos meses, “configuram genocídio”.
E não basta, neste sentido, ficar-se pelo reconhecimento formal do Estado da Palestina, uma decisão anunciada no final de setembro pelo ministro português dos Negócios Estrangeiros, que Miguel Duarte considerou ser unicamente uma “medida simbólica, sem impacto concretamente nenhum naquilo que se passa na Palestina”.
Para além de defender que Portugal deveria avançar com o já mencionado corte nas relações “diplomáticas” e “comerciais” com Israel, o ativista precisou que também é necessário aplicar “sanções a Israel imediatamente”. E concluiu: “Penso que isto é o mínimo moralmente exigível. [...] Todos os Estados do mundo têm esta obrigação”.
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