Como o pacto partidário centrista permite a nova "maioria venezuelana" do Parlamento Europeu
O acordo de coligação assinado pelos três partidos do centro do Parlamento Europeu - o Partido Popular Europeu (PPE), os Socialistas e Democratas (S&D) e o Renew -, que abriu caminho à aprovação dos comissários, selou a possibilidade de o PPE mudar de lealdade e aliar-se aos partidos de direita.
A chamada "declaração da Plataforma de Cooperação" não previa uma parceria exclusiva entre os signatários, deixando a porta aberta a quem valorizasse "o Estado de direito, uma posição pró-Ucrânia e uma abordagem pró-europeia".
Tudo começou com uma votação simbólica, mas a tendência, que está a ganhar cada vez mais força nas decisões do Parlamento Europeu, ficou clara durante as negociações de aprovação dos comissários e poderá moldar a próxima estratégia da Comissão Europeia.
Já não existe uma maioria política única na União Europeia.
O PPE já votou com os grupos de direita, nomeadamente no recente regulamento sobre a desflorestação, em que se associou aos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), aos Patriotas pela Europa (PfE) e à Europa das Nações Soberanas (ESN), em vez de se manter ao lado dos seus parceiros tradicionais, os Socialistas e Democratas (S&D) e o liberal Renew Europe, que ajudou a eleger Ursula von der Leyen como presidente da Comissão em julho.
De acordo com os eurodeputados e com fontes do Parlamento Europeu, o novo acordo permite ao líder do PPE, Manfred Weber, ter as duas coisas. Por um lado, pode ficar ao lado do S&D e do Renew quando lhe for conveniente; por outro, pode esmagá-los no parlamento com a ajuda das forças de direita.
A ascensão da "maioria venezuelana
Esta viragem à direita do PPE já era evidente na anterior legislatura: nomeadamente na reação contra a chamada Lei da Restauração da Natureza, um projeto de lei que visava restaurar pelo menos 20% das áreas naturais marítimas e terrestres degradadas até 2030, ao qual o PPE e os grupos de direita se opuseram fortemente.
O resultado das eleições europeias, em que os grupos de direita aumentaram significativamente o seu número no PE, tornou esta mudança mais frequente.
Os partidos nacionalistas e eurocéticos formaram o PfE, atualmente o terceiro maior grupo na assembleia europeia com 86 membros, enquanto o seu antecessor, Identidade e Democracia, era o sexto maior grupo na assembleia anterior. O ECR também aumentou ligeiramente o seu número de eurodeputados, ultrapassando o Renew Europe como quarto maior grupo, e a estes juntou-se no parlamento a nova força de extrema-direita, o ESN.
Um quarto do parlamento está agora mais à direita do que o PPE, o que confere ao maior grupo do parlamento um papel central e a possibilidade aritmética de construir maiorias diferentes, oscilando tanto à esquerda como à direita do hemiciclo.
O primeiro episódio deste tipo teve lugar em outubro, quando os eurodeputados de direita se uniram para reconhecer Edmundo González como presidente da Venezuela, numa resolução simbólica e não vinculativa adotada pelo parlamento Europeu.
A resolução foi aprovada com 309 votos a favor, 201 contra e 12 abstenções, abrindo uma brecha na coligação pró-europeia de grupos centristas que reelegeu Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia. O Renew Europe, que concordava com o mérito do reconhecimento de González, recusou-se a votar a favor, juntamente com as forças da direita radical.
A chamada "maioria venezuelana" que daí resultou voltou a insistir no mesmo tema alguns dias mais tarde, quando Edmundo González e a outra líder da oposição venezuelana, María Corina Machado, receberam o Prémio Sakharov do Parlamento Europeu, atribuído a indivíduos dedicados à defesa dos direitos humanos e da liberdade de pensamento.
Machado e González foram nomeados conjuntamente pelo PPE e apoiados na votação final pelo ECR e pelo PfE, depois de o candidato deste último, o milionário da tecnologia Elon Musk, ter sido excluído da lista de finalistas.
Em novembro, uma questão mais substancial foi decidida por uma maioria de direita, quando a lei da desflorestação da UE foi adiada e diluída pelo parlamento. As alterações apresentadas pelo PPE com o objetivo de reduzir os encargos para os importadores foram apoiadas pela ECR, pelo PfE e pelo ESN. Os eurodeputados liberais do Renew Europe ficaram divididos, enquanto os partidos de esquerda votaram contra.
Uma maioria variável no PE significa uma via dupla para a Comissão
Apesar de o PPE nunca ter delineado publicamente qualquer cooperação estruturada com as forças de direita, o grupo tomou de facto partido pelo ECR ao defender a atribuição do cargo de vice-presidente ao conservador Raffaele Fitto, dos Irmãos de Itália.
Os socialistas e os liberais queriam privar o italiano da vice-presidência, mas contentaram-se com algumas linhas de desacordo na sua carta de avaliação. O líder do PPE, Manfred Weber, defendeu repetidamente a escolha devido à relevância da Itália como país.
Alberto Alemanno, professor de Direito Comunitário na HEC Paris, afirmou que a nova Comissão Europeia vai basear-se numa maioria parlamentar caso a caso, dependendo da questão política apresentada ao Parlamento e ao Conselho. "Pela primeira vez na história, a Comissão não vai depender exclusivamente da coligação pró-UE que tem governado a UE nas últimas quatro décadas", disse Alemanno à Euronews.
Em alguns temas, as opiniões do PPE convergem com as dos partidos mais à direita. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pode beneficiar deste facto para fazer passar algumas das suas políticas mais conservadoras. "Podemos esperar que a Comissão de Ursula von der Leyen se vire para a direita para obter apoio para as suas reformas migratórias e para a desregulamentação das suas políticas climáticas e ambientais", disse Alemanno.
No que se refere às disposições do Pacto Ecológico, um possível ponto de discórdia poderá ser a proibição da venda de automóveis com motor de combustão na UE a partir de 2035, uma causa para as forças de direita. Na anterior legislatura, o PPE apoiou algumas exceções e flexibilidade ao regulamento.
No que se refere à política de migração, a "maioria venezuelana" pode voltar a unir-se para reforçar as fronteiras externas da UE e promover mais acordos com os países de trânsito e de origem dos migrantes.
A primeira prova disso foi vista quando os legisladores de direita votaram a favor do financiamento de "barreiras físicas externas" no âmbito do orçamento da UE para 2025. Neste caso, o PPE apoiou uma alteração à resolução sobre o orçamento, apresentada pelos eurodeputados Alexander Jungbluth (Alemanha) e Stanisław Tyszka (Polónia), ambos do ESN, embora a resolução no seu conjunto tenha sido depois rejeitada pelo hemiciclo.
Alemanno considera que a maioria centrista pró-UE do Parlamento continuará a ser necessária para aprovar as políticas mais importantes, que vão da competitividade à Defesa. Mas sem um acordo de coligação verdadeiramente vinculativo que obrigue o PPE a respeitar as prioridades políticas acordadas, será impossível evitar a dupla abordagem ao longo da legislatura.
"A única forma de os socialistas e os liberais responsabilizarem a Comissão é através de uma moção de censura", afirma Alemanno. Embora os tratados prevejam este mecanismo, ele nunca foi utilizado e exigiria uma maioria de dois terços do Parlamento Europeu. Mas os socialistas, os liberais e as forças de esquerda do Parlamento representam menos de metade do total.
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