Poderá Itália construir a ponte suspensa mais longa do mundo apesar do conflito com o Tribunal de Contas?
O Tribunal de Contas italiano rejeitou recentemente o plano de longa data do governo para construir aquela que seria a ponte suspensa mais longa do mundo, ligando a ilha da Sicília à região da Calábria através do Estreito de Messina.
O Tribunal de Contas italiano - que supervisiona as despesas públicas - disse que iria divulgar a fundamentação completa da sua rejeição no prazo de 30 dias.
Durante uma audiência a 29 de outubro, os juízes questionaram se o concurso de 2005 para o projeto ainda se mantinha, citando uma discrepância nos custos previstos e a conformidade com as regras de concorrência da UE.
O projeto foi também criticado pelos críticos por ser demasiado caro e pelo seu potencial impacto ambiental e pelos riscos ligados à atividade sísmica na região.
O vice-primeiro-ministro e ministro dos Transportes do país, Matteo Salvini, que liderou o projeto de 13,5 mil milhões de euros e o classificou como "a obra pública mais importante do mundo", prometeu avançar com o plano.
Se for construída, a ponte suspensa de 3,7 quilómetros transformará as ligações de transporte dos cerca de 4,7 milhões de habitantes da Sicília, ligando-os pela primeira vez ao continente.
Salvini, que em tempos fez campanha para que o Norte de Itália se separasse do resto do país, apresentou o projeto como uma forma de dar um impulso económico às regiões do Sul de Itália.
Depois do tribunal ter apresentado as suas conclusões, Salvini classificou a decisão como "uma escolha política e não uma decisão técnica serena".
A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, afirmou que o veredito do tribunal é "mais uma invasão da jurisdição sobre as escolhas do governo e do parlamento", apesar de o tribunal ter uma função mais reguladora.
Os seus comentários surgem num contexto de tensões entre o governo italiano e o poder judicial, que tem resistido ferozmente às propostas de reforma judicial de Meloni e desafiado a sua iniciativa emblemática de processar os migrantes que chegam a Itália na Albânia.
Salvini indicou aos jornalistas que o governo "aguarda as observações do tribunal com total calma e está confiante de que podemos responder-lhes ponto por ponto, porque cumprimos todos os regulamentos".
A construção do projeto, disse, começará em fevereiro e não em novembro, e o governo irá, "sem qualquer conflito entre poderes do Estado... fornecer toda a informação solicitada".
Mas poderão Salvini e Meloni contornar o Tribunal de Contas?
O que é o Tribunal de Contas de Itália?
O Tribunal de Contas de Itália, que remonta a 1862, é um órgão constitucional responsável pela supervisão das funções públicas. O seu principal dever é auditar as despesas públicas, analisar o impacto financeiro das leis e garantir que as despesas públicas estão em conformidade com as regras orçamentais nacionais e comunitárias.
O tribunal pode emitir pareceres preventivos, como no caso da ponte proposta, bem como exercer controlo judicial. Este último significa que pode emitir decisões sobre irregularidades contabilísticas e sobre a potencial utilização indevida de dinheiros públicos em projetos já concluídos.
Pode o governo italiano ignorar a sua decisão?
Em suma, sim, mas não sem algum risco. Os especialistas referem, no entanto, que, de um modo geral, o governo pode avançar e, potencialmente, ficar livre das consequências do fracasso do projeto.
De acordo com Nicola Lupo, professor de Direito Constitucional na Universidade Luiss Guido Carli, em Roma, se o governo avançar com o plano sem satisfazer as dúvidas do tribunal, este pode registar as suas reservas.
"Neste caso, o Tribunal de Contas tem de fazer o chamado registo de reserva, que é transmitido ao parlamento", explicou Lupo ao The Cube, a equipa de verificação de factos da Euronews. "Em teoria, isso aumenta a responsabilidade política do governo para agir."
Se a ponte, que enfrenta uma oposição feroz por parte dos críticos, incluindo os do sul de Itália, enfrentar uma oposição legal no futuro, o aviso dos tribunais sobre a sua viabilidade pode servir de premissa para futuros processos judiciais.
Tanto Meloni como Salvini disseram que vão responder às reservas do tribunal sobre a ponte. Mesmo que o tribunal não fique satisfeito, podem avançar com o projeto.
"O Tribunal de Contas atua como um órgão auxiliar, como um órgão de controlo do governo", explicou Lupo. "Não tem a última palavra, digamos assim."
Leila Simona Talani, professora de Economia Política Internacional na King's College de Londres, adiantou ao The Cube que o governo irá muito provavelmente responder reiterando o seu desejo de iniciar o projeto com base no interesse nacional.
"Existe uma cláusula que prevê que, se o trabalho não for concluído, se não houver dinheiro ou se surgirem obstáculos, existe um sistema de compensação já incorporado no projeto, caso este falhe", referiu. "Por isso, todo o projeto está a ser concebido de forma a que, mesmo que falhe, nada aconteça na prática, a não ser que haja corrupção significativa".
O principal impacto da hesitação do tribunal é que o governo italiano "terá de se reunir novamente e estabelecer que isto é do maior interesse público para o país", disse ainda.
"A não ser que [Meloni] esteja no governo durante 20 anos, é altamente improvável que ela seja responsável por concluir este projeto", acrescentou Talani, apontando para outros projectos de infraestruturas públicas em Itália, como a construção da autoestrada Salerno-Reggio Calabria, que demorou 55 anos a ser concluída.
"Não me parece que a responsabilização seja uma questão aqui; existem poucas questões quanto à responsabilização do governo", disse.
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