Migração voluntária ou deslocação forçada? Habitantes de Gaza enfrentam uma realidade catastrófica

Como vêem os palestinianos o seu futuro em Gaza e como encaram os apelos à migração voluntária ou à deslocação para fora da Faixa?

O Governo israelita anunciou, há meses, que tinha aprovado um plano para criar um departamento especial para organizar o que descreveu como "migração voluntária segura" dos residentes de Gaza para países estrangeiros, no contexto da guerra de mais de 20 meses que se seguiu ao ataque do Hamas ao sul de Israel, que matou 1200 israelitas e fez 250 reféns.

A decisão foi tomada com base numa proposta apresentada pelo ministro da Defesa israelita, Yisrael Katz, e aprovada pelo Conselho de Ministros. Segundo um comunicado emitido pelo seu gabinete, a nova administração será responsável por coordenar as transferências em colaboração com as organizações internacionais e as partes interessadas, supervisionando a organização das partidas a partir dos pontos de passagem da Faixa de Gaza, incluindo a utilização do aeroporto de Ramon. A administração também deverá garantir a realização dos controlos de segurança necessários e desenvolver uma infraestrutura que permita viagens terrestres, marítimas e aéreas para países terceiros.

O anúncio deste plano coincidiu com o agravamento da crise das deslocações internas na Faixa de Gaza, o que levou as organizações de defesa dos direitos humanos e humanitárias a alertar para as repercussões políticas e humanitárias de tais políticas, que são vistas como o prelúdio de um esquema de deslocação forçada sob a capa de "voluntária".

Uma velha política renovada: de Dayan a Netanyahu

Embora a retórica oficial israelita apresente o novo plano como uma resposta humanitária, as suas origens remontam a décadas atrás. A intenção de despovoar Gaza não é nova e não está apenas ligada à guerra mais recente.

A 12 de junho de 1967, após a tomada de Gaza, o então ministro israelita da Segurança, Moshe Dayan, descreveu a Faixa como um "problema complexo", assinalando a perceção negativa de Israel sobre a região. Durante a assinatura dos Acordos de Oslo, na década de 1990, o falecido primeiro-ministro Yitzhak Rabin expressou o seu desejo de "ir para o mar ou afogar-se nele", manifestando o seu desejo de separar completamente a Faixa de Gaza de Israel.

Durante a recente guerra, fugas de informação diplomáticas revelaram que o atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu propôs, durante o seu encontro com o antigo secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken, em 12 de outubro de 2023, a criação de um corredor humanitário para "transferir os residentes de Gaza para o Egito". Esta proposta foi recebida com reservas iniciais por parte dos EUA, a que se seguiu uma declaração mais estridente do ministro dos Assuntos Estratégicos Ron Dermer, que afirmou: "Não haverá crise humanitária em Gaza se não houver civis".

Estas declarações frequentes mostram que o que está a ser oferecido hoje como uma solução temporária ou um "corredor humanitário" é o culminar de uma tendência política israelita acumulada que vê Gaza como um fardo demográfico do qual se quer livrar, seja pela guerra ou pela migração forçada envolta em slogans humanitários.

Deslocação inicial e aumento do discurso sobre migração à medida que a guerra se intensifica

Com o início da guerra na Faixa de Gaza, em 7 de outubro de 2023, mais de 120 000 palestinianos - na sua maioria com dupla nacionalidade - puderam deixar a Faixa através da passagem terrestre de Rafah rumo ao Egito e a outros países. Estima-se que cerca de 300 000 pessoas em Gaza tenham dupla nacionalidade, o que reflete a dimensão da base populacional que, teoricamente, tem a opção de sair.

À medida que as operações militares se intensificavam, que o âmbito da destruição se alargava e que a fome atingia níveis catastróficos, os habitantes de Gaza falavam cada vez mais em migração como forma de escapar à guerra e à sua devastação. Por outro lado, surgiram vozes que rejeitam categoricamente a ideia, insistindo em permanecer na terra apesar das pesadas perdas e da deterioração das condições humanitárias, o que reflete uma profunda divisão social sobre o futuro da Faixa de Gaza e dos seus residentes durante a guerra em curso.

Palestinianos recusam-se a emigrar apesar dos bombardeamentos: "É mais fácil morrer aqui do que partir"

Numa tenda simples em Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza, Mohsen al-Ghazi, 34 anos, deslocado da zona de Juhr al-Dik, senta-se e conta a sua tragédia, que é semelhante às histórias de milhares de palestinianos cujas vidas foram destruídas pelos bombardeamentos israelitas. Al-Ghazi perdeu a sua casa, o seu filho mais velho foi assassinado e os seus pais morreram debaixo dos escombros da casa, mas ele insiste em ficar em Gaza e rejeita categoricamente a ideia de emigração.

"É mais fácil morrer aqui do que dar à ocupação a oportunidade de cumprir as suas mentiras" , afirma.** Sublinha que a sua posição não resulta de emoções, mas de convicções religiosas, patrióticas e morais. Rejeita mesmo a ideia de um êxodo em massa, que alguns insinuam: "Mesmo que a ocupação envie navios para nos transportar, não sairei daqui".

Al-Ghazi lamenta o facto de alguns jovens considerarem a emigração sob o peso do sofrimento, sublinhando que "a salvação individual significa abandonar a nossa responsabilidade de defender esta terra".

No campo de Nuseirat, Sami al-Dali, 45 anos, partilha a mesma atitude, apesar de ter perdido metade da sua casa devido aos bombardeamentos. "A deslocação é um projeto israelita falhado e eu não serei uma pedra na sua muralha". Considera que o sofrimento dos habitantes não justifica o abandono, mas não condena aqueles que decidem partir, acrescentando: "Cada um tem a sua opinião, e os que partem podem regressar ou servir a causa a partir do estrangeiro."

Al-Ghazi e al-Dali concordam que os projetos de deslocação que o governo israelita tentou impor falharam perante o apego dos palestinianos à sua terra, observando que os incentivos materiais não mudarão essa firmeza. "Digam ao mundo que somos um povo que escolheu morrer na sua terra e não vendê-la", disse al-Ghazi, enquanto al-Dali sublinhou que "cada pedra aqui testemunha que a Palestina não está à venda".

Pessoas deslocadas em Gaza: "Não aguentamos mais"

À luz da guerra em curso e da deterioração das condições humanitárias na Faixa de Gaza, Bilal Hassanin considera que a opção da emigração se tornou uma "necessidade urgente", apesar da sua dificuldade. Hassanin, que perdeu a casa da família e foi deslocado várias vezes, anda agora de muletas depois de ter sido ferido perto de Netzarim.

"Perdi tudo. Já não posso completar os meus estudos universitários, não há comida, não há água, não há eletricidade", diz. "A Faixa de Gaza foi destruída e as hipóteses de construir um futuro aqui estão a diminuir de dia para dia. Hassanin acrescenta que o seu sonho é encontrar um ambiente seguro fora de Gaza que lhe permita recuperar a sua vida e realizar os seus sonhos, numa altura em que a vida na Faixa de Gaza se tornou quase impossível".

A mesma visão é partilhada por Zakaria Farajallah, que foi ferido três vezes, o que lhe causou problemas nos tendões dos pés, no cérebro e perturbações digestivas. "Através do meu processo médico, estou a tentar obter uma oportunidade de tratamento no estrangeiro e vou aproveitar esta saída para pedir asilo, porque a Faixa de Gaza se tornou um lugar aterrador e inabitável".

A mulher de Farajallah, Hanin Akl, também sublinha que ficar é quase impossível, especialmente porque está grávida e tem dois filhos a cargo. "Perdemos a nossa casa e temos andado a viajar de um campo de deslocados para outro, e o ferimento do meu marido veio agravar o nosso sofrimento. Precisamos urgentemente de viajar para encontrar um ambiente seguro para nós e para os nossos filhos", explica.

Hanin, que tem um bacharelato em medicina laboratorial, acrescenta que o seu sonho de encontrar um emprego não se concretizou nem antes nem durante a guerra, mas espera que a saída de Gaza lhe dê a oportunidade de construir um futuro mais estável para a sua família.

Advertências oficiais e internacionais

O plano israelita foi alvo de uma rejeição generalizada por parte dos palestinianos e de avisos internacionais. O Hamas considerou que o que está a ser promovido sob o nome de "migração voluntária" é um esquema de deslocação forçada destinado a "liquidar a causa palestiniana" e a esvaziar Gaza dos seus habitantes. No mesmo contexto, as Nações Unidas confirmaram que a "migração voluntária" não tem legitimidade num contexto de guerra, de cerco e de falta de condições básicas de vida, observando que a deslocação forçada é um crime ao abrigo do direito internacional.

As organizações de defesa dos direitos humanos, incluindo a Human Rights Watch e a UNRWA, também alertaram para o facto de o plano israelita ameaçar reproduzir a Nakba e apelaram ao respeito pelo direito dos palestinianos a permanecerem nas suas terras, em vez de os obrigar a partir sob pressão e fome.